Berço do surfe, Santos usa o esporte para transformar vida de idosos e pessoas com deficiência

Por um escritor misterioso

Descrição

Kauany SilvaNo Brasil, o surfe nasceu nas praias de Santos. E, mais do que isso, a Cidade se manteve pioneira na disseminação do esporte aos mais diversos públicos, por meio de suas escolas públicas que ensinam a modalidade gratuitamente. Para homenagear os profissionais que trabalham duro para dar continuidade ao legado do surfe no Município, bem como celebrar a formação de milhares de atletas apaixonados pelo esporte, comemora-se, neste sábado (21), o Dia Municipal do Surfista.Iniciada na Cidade há mais de oito décadas, a modalidade ganhou sua primeira escola pública há 32 anos. A “Escola Radical de Surf” foi uma iniciativa pioneira não só na região ou no Brasil, mas no mundo, entrelaçando ainda mais a história de Santos com a do esporte aquático.Sob o comando de Cisco Araña, o primeiro surfista profissional do Estado de São Paulo, a escola já ensinou a arte de se equilibrar em cima da prancha a mais de 32 mil alunos, e hoje conta com 400 inscritos. No esporte desde 1968, Cisco é coordenador e professor não só deste equipamento, mas de outra unidade que marcou igualmente a história da modalidade: a escola pública de surf adaptado.Inaugurada em 2020 para atender pessoas com os mais variados tipos de deficiência, a “Escola Radical de Surf Adaptado”, que hoje tem mais de 180 alunos, também se tornou a primeira do mundo a atender a tais especificidades. A ideia e as pranchas adaptadas a cada necessidade, criadas pelo equipamento, se tornaram referência e foram exportadas para outros países, como Estados Unidos e Espanha, por exemplo.“O surfe é uma coisa mágica que vem para somar e melhorar a qualidade de vida. Então eu fico muito feliz de estar a frente disso, honrado de ver a sociedade aceitando esse esporte, que já foi alvo de preconceito, e de receber o apoio da Prefeitura e da Blue Med, nossa parceira, que acreditaram nesses projetos”, disse Cisco.Outra marca do ensino do esporte em Santos é o atendimento ao público acima dos 50 anos de idade. Como são quase um quarto da população santista, os idosos não poderiam ficar de fora da atividade que tanto tem a ver com seu município. Dentre os quase 600 alunos atendidos por ambas as escolas, mais de 100 já estão na melhor idade.“O surfe, de uma maneira geral, sempre foi um pouco egoísta em relação a essas pessoas. Lá atrás, todos só pensavam em pegar ondas perfeitas e receber seus troféus, e eu, que também já fui competidor, acho que a maior relevância do esporte é quando você supera essa parte do ego e passa para os outros esse conhecimento que proporciona tanta felicidade”, afirmou o coordenador.SAÚDE E UNIÃOApegados aos alunos, Cisco e os outros sete professores que atuam pelas escolas recebem o dobro de carinho de seus pupilos. Os olhos dos profissionais brilham a cada onda surfada pelos aprendizes, enquanto recebem deles um olhar de completo respeito, gratidão e admiração.O pequeno Guilherme Mizael, de 13 anos, por exemplo, é categórico ao responder sua parte preferida das aulas: “O Paulo!”, um dos professores que atuam pela Escola Radical de Surf Adaptado. Nos três anos que frequenta o equipamento, o menino que tem síndrome de Down não só fez amizade com professores e alunos, como teve melhoras comportamentais, segundo a mãe, Maria Nanci Carvalho, de 57 anos.“A aula de surfe na praia é boa para todo mundo, mas para eles mais ainda porque ensina a criança a ter mais confiança e equilíbrio, por exemplo, pelo o que eu vejo no Guilherme. O mar é libertador e os faz sentir realizados a cada conquista, então as crianças precisam dessa oportunidade”, disse Nanci.Outra mamãe que matriculou o filho em busca de um melhor desenvolvimento comportamental foi Alyne Eduardo, de 37 anos, que uniu o útil ao agradável, já que o pequeno Miguel Eduardo da Rocha Alexandre, de 10, já mostrava grande apreço pelas brincadeiras na água desde a primeira infância. “Hoje mesmo falei para ele: ‘Miguel, adivinha aonde vamos hoje? Surfar!’, e ele respondeu, surpreso: ‘Mentira!’”, contou a mãe, em meio aos risos.Ela conta que Miguel tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e por isso apresentava algumas questões comportamentais antes de frequentar as aulas. “Matriculei ele para melhorar o equilíbrio e o comportamento, como a atender comandos, por exemplo, porque quando ele era menorzinho, isso era bem difícil. Ele também aprendeu a esperar, ter mais paciência, melhorou no relacionamento com as pessoas e amou o surfe. É um projeto muito bem pensado”.Quanto às melhorias físicas, a atleta e recepcionista Sara Neves Macedo, de 32 anos, fala com propriedade. Ela sofreu um acidente de moto há cerca de seis anos e perdeu completamente os movimentos do braço direito. Porém, com a prática do surfe e outros esportes, viu as funções do membro retornarem gradativamente. “Foi indicado que eu fizesse algum esporte para reativar as funções motoras e as atividades no mar não tem tanta gravidade, então são melhores para esse estímulo”, contou.Hoje, Sara compete pela equipe paralímpica de atletismo e natação de Praia Grande, onde mora, mas revela que a busca pelas aulas de surfe não foi fácil. “Não conseguia encontrar ninguém para me dar aula porque as pessoas ficavam em choque por causa do meu braço. Sabia que tinha aula no Posto 2, então fui lá para pegar uma orientação e descobri, em meados de 2019, que iria inaugurar a escola de surfe adaptado”, contou a atleta.Diferente de Sara, Miguel e Guilherme praticam o esporte antes mesmo de a escola inaugurar, quando as aulas ainda eram ministradas no Posto de Salvamento 2. Essa interação contínua, segundo a recepcionista, é de extrema valia para pessoas com deficiência e seus familiares.“Não é só pelo esporte, mas envolve o social e emocional. A gente cria amizade, fica feliz pela evolução do outro, comemora quando um consegue ficar em pé na prancha, as mães conversam e trocam experiências. Então promove uma interação que muitas vezes quem tem deficiência não tem, porque fica muito ali na proteção da família. E outra que mostra que a gente pode fazer várias coisas, diferente do que as pessoas pensam ou falam”, declarou Sara.ALUNOS 50+Na turma 50+, o clima de união não é diferente. Durante as aulas, os aposentados mostram que a idade é apenas um número e que o esporte pode curar além do físico. “A maioria deles entrou com alguma questão, às vezes física, mas muitas vezes emocional. Muitos sofriam de solidão, ansiedade, depressão, e aqui fizeram novas amizades, novas companhias. Então eles fazem as aulas juntos, saem para almoçar, para passear. Se tornaram mesmo uma família”, afirma Cisco.A aposentada Edmea Pereira Correa, de 76 anos, por exemplo, costuma dizer que “renasceu no surfe”. Ela e o marido, Francisco Verazane de Aguiar, de 79, começaram a fazer as aulas há 16 anos, em razão do filho, e viram no esporte muitos benefícios, como a qualidade de vida, o contato com a natureza e as melhorias na saúde, principalmente quando Edmea enfrentou um câncer de mama.“Depois que meu filho perdeu a visão, trouxe ele para fazer as aulas de surfe e o Cisco me incentivou a entrar. Eu me achava velha, mas me enchi de coragem e vim. Foi amor à primeira onda”, afirmou Edmea.“Quando o câncer apareceu, eu falava que ia parar de surfar, que não teria mais condições, e o Cisco continuava me incentivando, dizendo que o esporte também era bom nesse caso. Fiz três cirurgias, me recuperei e nunca mais parei de pegar minhas ondinhas”, completou a aposentada.O marido, que entrou no esporte para acompanhar a amada, afirma que não se pode deixar a idade limitar os sonhos e vontades. “Temos a ideia de que, conforme vamos ficando idosos, não podemos mais fazer isso ou aquilo, e quando você se desafia, perde esse hábito e começa a ver que tem capacidade para fazer muita coisa. Eu mesmo esqueci que estou ficando velho, minha alma agora é de criança novamente”, disse Francisco.A representante comercial e pensionista Célia Maria de Melo Bannitz, de 71 anos, segue a mesma filosofia. Ela mora na Capital e desce a Serra toda semana, há um ano e meio, para participar das aulas. “Desde adolescente eu sonhava em surfar. Casei, tive um filho e falava que, quando fosse velha, seria uma surfista de 70 anos. O universo consolidou essa minha vontade, porque tive minha primeira aula de surfe uma semana depois de completar sete décadas de vida”, contou Célia.Célia descobriu a escola por acaso, ao visitar uma amiga na Cidade, e viu sua vida mudar após pegar a prancha pela primeira vez. “O surfe me deu amigos maravilhosos, me trouxe mais saúde, alegria e qualidade de vida, porque antes eu era uma pessoa completamente sedentária, tinha aquela vida sem sal, cinzenta. Hoje eu tenho alegria de viver, vontade de fazer as coisas, de sair com os amigos. Sou mais feliz por causa do surfe e desta turma incrível”, declarou a pensionista.BENEFÍCIOSSegundo o terapeuta ocupacional e professor Antônio Vasconcelos, que atua pelas escolas públicas de surfe, os benefícios do esporte são inúmeros para o ser humano e fazem grande diferença, principalmente, na vida de idosos e pessoas com deficiência, que têm complexidades específicas.“Tem o contato com a natureza, por meio do oceano, que influencia diretamente na qualidade de vida; é um esporte que permite uma maior proximidade entre o professor e o aluno; estimula a atenção, respiração, concentração, equilíbrio, tonicidade muscular e postura, sem falar do que também é muito importante: a socialização”, explica o profissional.Segundo Vasconcelos, a interação entre as famílias e os alunos é peça-chave no processo terapêutico e influencia diretamente na saúde mental. “Fortalece o vínculo entre eles e impacta diretamente na autoestima, porque quando eles conseguem pegar uma onda, surge essa sensação de pertencimento, de que eles são capazes, de autoconfiança mesmo”.O terapeuta também explica que, para que o esporte seja ainda mais benéfico para os matriculados, é criado um plano de aula específico para cada um deles. Através de uma conversa com o aluno e a família, é possível conhecer um pouco mais da peculiaridade do ingressante e entender de que maneira a modalidade pode contribuir. “Nesse plano, a gente utiliza todas as possibilidades que o surfe nos proporciona para estimular o aluno de maneira global”, explica o profissional.INÍCIO DO SURF EM SANTOSApesar da íntima história entre a cidade de Santos e o surfe, a modalidade não teve início pelas mãos de um santista. O primeiro a desbravar as águas da Cidade e do Brasil, em cima de uma folha de madeira, foi o estadunidense Thomas Rittscher, no final de 1937. Aos 20 anos de idade, ele construiu a própria prancha seguindo um tutorial presente em uma revista norte-americana, criação que também foi responsável pela primeira mulher surfista no Brasil: Margot Rittscher, a irmã mais nova de Thomas, que ganhou o título após se aventurar sobre o artefato manufaturado pelo irmão.No ano seguinte ao primeiro passo do surfe no País, três brasileiros se interessaram pela forma como os irmãos Rittscher “brincavam” na água. Eram os ainda adolescentes João Roberto Suplicy (Juá) Hafers, Osmar Gonçalves e Silvio Manzoni, que utilizando a mesma revista, emprestada de Thomas, colocaram sobre as águas santistas suas próprias pranchas. A mão de obra ficou a cargo do engenheiro naval e amigo dos garotos, Júlio Putz, que criou as peças que levariam ao trio o título de “primeiros surfistas brasileiros”.Também foi na Cidade onde nasceu o maior surfista do País, em 1962. Alexandre Salazar Júnior, o “Picuruta”, é o brasileiro com o maior número de títulos na categoria, colecionando 170 troféus nas mais diversas modalidades de surfe. Ele ainda marcou a história sendo campeão brasileiro dez vezes e vice-campeão mundial em três ocasiões.SERVIÇOA Escola Radical de Surf funciona no Posto de Salvamento 2, na direção da Rua Olavo Bilac (Pompéia). As aulas são divididas em duas turmas: de 4 a 49 anos e 50+. No verão, opera todos os dias de portas abertas, ou seja, qualquer pessoa pode participar. Mais informações podem ser obtidas através do telefone (13) 3251-9838.Já as aulas de surf da Escola Radical de Surf Adaptado acontecem no Posto de Salvamento 3, na direção da Rua Marcílio Dias (Gonzaga). Mais informações pelo número (13) 3235-8081.Os equipamentos atendem de terça a sexta, das 8h às 11h e das 14h às 17h. Ambas as escolas são gratuitas e realizam cadastros para lista de espera, cujos inscritos são comunicados do surgimento de vagas.
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